Ultimato







Ontem voltei para casa. Tomei minha mochila nos ombros na última hora do expediente e voltei pra casa. Cruzei as praças, olhei para o resto dos humanos que por ali trafegava, usavam máscaras de proteção, mas alguns mostravam seus dentes ainda intactos. Intacta também era a solidão que me levava pra casa.

Voltava pra casa comigo. Mas eu sou uma companhia tagarela dessas que fazem perguntas, muitas perguntas e quase nada responde ou conclui. Dizem, os amigos mais próximos e alguns alunos meus, que sou chato. Imaginem eles que eu tenho que me suportar ouvindo de mim um solilóquio infinito, raciocinando até em sonhos.

No caminho para casa, notei que nas duas praças por onde passei não havia os cães que normalmente perambulam ou dormem por ali. Até os cães ficaram em casa?

Chegando a casa, minha vizinha que também chegava do trabalho me cumprimentou com um sorriso estranho sem máscara. Fechou o seu portão e se trancou. Entrei na minha casa e me tranquei também.

Ao chuveiro, lavava-me para retirar as impurezas adquiridas no trabalho e durante o percurso a minha casa. A água e o sabão passado no meu corpo retiravam de mim não só o resto de pele e fungos, escorria também para o ralo a derrota de me conformar com a desistência da humanidade. E essa derrota ia-se fluidamente pelo ralo, ocupando os canos até chegarem aos bueiros e se encontrando com outros resíduos virando lama até. Naquela matéria pastosa fétida haveria um pouco de mim, parte do meu órgão dérmico, das minhas secreções, dos meus pelos, parte da minha maldita capacidade de pensar e de imaginar.

E assim, percebi que todo dia escorremos pelo ralo. Com sorte viraremos lama que depois retornaremos aos lençóis dágua ou evaporaremos em partículas para sermos respirados se antes não formos impedidos pelas máscaras. Saio do banho com a missão cumprida de que evacuei parte do que sou.

Troco de roupa. Roupas folgadas de ficar em casa. Preparo minha janta. Depois, como sobremesa, uma colher de xarope caseiro à base de alho roxo. 

Na cama, volto a me contaminar com as mensagens virtuais do meu aparelho androide. Elas falam da covid-19 o tempo todo. Percebo que ao digitar me conecto com o meu futuro. Aquele aparelho é o nosso ancestral da nova raça "humana" futura. Ele é a primeira célula. E nossa contribuição "voluntária" é repassar nossos últimos códigos humanos para ele. Todos viraremos números, letras, hashtags ... Tudo isso porque um dia houve um ultimato: Fiquem em casa. E ficamos. Voltamos para casa. Voltamos a nossa caverna. Ao nosso nicho. Ao oikos. Voltamos para nós. Porque tinha que se cumprir a promessa dos povos antigos em seus livros antigos: Tu és código e código tu voltarás a ser.







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