Para depois do carnaval


Pierrot (P. Picasso)

deixo a avenida
despedindo-me
da multidão
arrebatada
em corpos
seminus
saturninos
ébrios
requebrantes

quartafeirizo-me
opaco
calado
pierrô solitário
brasileiramente
desfantasiado

vou sozinho
pé ante pé
em cruzado pausado
ao último samba
entrecortando
em stop motion
as linhas descontínuas
da rodovia

vou madrugando
a cidade
cumprimentando
lojas
abrindo janelas
meio normal
mas sei
que estou despido
que estou sem coroa
que não sou mais rei

hoje
a avenida
ficará vazia
porque a memória
virará razão
porque os batuques
serão zumbidos
porque os tambores
serão calados

ontem
libei os vinhos de Ísis
dancei com bonecos
conduzi calunga
segui trios

hoje
tematizo uma alegoria
sem brilho
sem fantasia
sem alegria
desço do carro naval
e entro no carro real
da vida 
à deriva

ontem
usei mil máscaras
fui afeminado
fui machão
fui playboy
fui deputado
fui ladrão

hoje
dionisicamente
me dispo
e retiro o alvaiade
do rosto
para persignar-me
contritamente
de uma hipocrisia
cinzenta

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