Na terra de cego quem tem um olho é rei



PERSONAGENS:


Rei Alita Taludo
Padre Aquino
Juan Thicuteno
Eduardo Mangueira
Simone
Amélia
Salomé
Professora Penha




[Entra o cortejo de atores que se dirige para um trono no fundo do palco. À frente vem o rei (por ser caolho, usa um óculo). Em seguida: um padre; um rapaz com visual fashion trazendo uma garrafa de whisky; um bombeiro sem camisa]

Padre Aquino:  Salve, salve, Sua Majestade, o Grande Rei Alita Taludo, Reis dos Cachorrões!

Rei Alita:           É... tá valendo... Como é que é pessoal?     

[Os homens começam a cantar e dançar alguma música que lembre suas farras]

Padre Aquino: Vossa Majestade, vamos receber na vossa Corte, os mais peçonhentos animais já colocados pelo Criador no Jardim do Éden!

Rei Alita:  Meu amigo, pois se ele gosta de criar cobras, que elas fiquem no jardim dele e
não no meu palácio! E pelo que nós sabemos, reverendo Aquino, aqui ninguém é chegado a uma cobra!.... Quem gosta de cobra, aí, rapaziada?

Homens:    (pronunciando o “u” como em água) ... Guá!

Padre Aquino: Perdoe-me, Vossa Majestade, mas eu me referia a elas (fazendo gesto para as mulheres entrarem), as mulheres!

Rei Alita:  Mas pra que tanta cerimônia, reverendo, eu só não esperava que o rala-rala fosse começar tão cedo...

[As personagens mulheres entram em cena sob assobios e termos chulos. O cortejo vem com uma dona-de-casa; uma garota vestida com roupas mínimas; uma mulher vestida de paletó e gravata e uma professora]

Padre Aquino: Vossa Majestade, Rei Alita Taludo, elas me falaram antecipadamente, que preferem
ficar aqui sentadas ao seu lado e não lá embaixo... como de fato é o lugar delas.

Rei Alita:        (Dirigindo-se às mulheres) Mas claro que podem ficar ao meu lado, o meu reino é o seu reino. Subam, minhas princesas, podem sentar onde quiserem,  o Cachorrão real  está aqui para satisfazer seus gostos, podem usar e abusar.

Simone:             É exatamente por isso que estamos aqui!

Juan Thicuteno:   Olha só, a Suga Mama está apressadinha. Pode vir abusar de mim também, vem aqui, tomar sua dose, vem, pode vir...

Rei Alita:    É... tá valendo... Como é que é pessoal? 

  [Os homens começam a cantar e dançar alguma música que lembre suas farras]
 
Simone:     Alita Taludo, como é mesmo o nome desse cachorro?

Rei Alita:   Oh, perdão! Ainda não apresentei meus súditos...  este é o Padre Aquino.
                  
Padre Aquino:  Sem beijinhos, por favor.

Rei Alita:          Aquele é Eduardo Mangueira.

Eduardo Mangueira:  A sua disposição para apagar seu fogo na hora em que você quiser.

Rei Alita: E este é Juan Thicuteno, nosso baladeiro mais perigoso das áreas...

Juan Thicuteno: (Oferecendo um copo) Vamos selar nosso encontro, minha Suga Mama...

Simone: (Pegando o copo e derramando o líquido na cara de Juan) Olha aqui, seu moleque, quando disse que era por isso que estamos aqui,  eu me refiro a esta palhaçada toda. Estamos aqui para defender nossa igualdade de direitos. Será possível que um dia ainda vamos entrar num lugar com homens sem passar por algum constrangimento?

Professora Penha: Calma, Simone, também não vamos usar da violência para fazer defesa da nossa causa.

Simone: Violência?... Isso não é nada comparado aos tapas, empurrões, chutes e murros que todo dia muitas mulheres passam. E os assassinatos? Estes oferecidos pretensiosos acham que podem dirigir cantadas às mulheres na hora que bem entender... aliás, cantada, não! Essas insinuações são verdadeiras faltas de respeito.        Isso, sim, Professora Penha, isso é uma agressão! Isso é que é violência!

Professora Penha: Calma, calma... vimos aqui para esclarecer algumas coisas e vamos fazer isso usando do diálogo...

Amélia: A Simone é que é estressada demais... o homem só quis ser gentil...

Simone: (Irônica) Ah, tá...

Rei Alita: Eu gosto é dessas!

Juan Thicuteno: E eu gosto é daquelas!

Padre Aquino: Pra mim, são tudo serpentes venenosas!

Professora Penha: Alita, gostaria também de apresentar minhas companheiras de luta.

Rei Alita: Fique à vontade pra fazer o que você quiser, Professora Penha. Eu sou apenas um aluno pra você....

Professora Penha: Aquela é Salomé...

Salomé: Oi, gente, eu só sei dar uma reboladinha...

Eduardo Mangueira: Ai, rebole pra mim, Salomezinha... rebole...

Professora Penha: Esta é a Amélia...

Rei Alita: Uma mulher de verdade.

Professora Penha: Esta é a Simone...

Juan Thicuteno: As brabas me seduzem...

Simone: Vem dizer aqui na minha frente!

Professora Penha: E eu sou Penha, professora de Geografia.

Eduardo Mangueira: Tô doido pra ficar de castigo...

Professora Penha:  Bem, Alita Taludo...

Padre Aquino: Vossa Majestade... dá pra pelo menos uma vez, chamá-lo pelo tratamento real?

Professora Penha: Não, não dá, Padre Aquino... nós, mulheres, não reconhecemos o seu reinado, Alita. São milênios da história da humanidade sob o domínio do masculino e desprezo pelo feminino.

Rei Alita: Quer dizer, então, que recebo vocês na minha corte com toda a gentileza para vocês reclamarem do meu poder?

Simone: [Retira da cabeça do rei a coroa e põe na dela] Se há realmente um poder este poder deve ser o das mulheres!

[ A partir de agora, cada personagem na sua fala retirará a coroa de quem terminar de falar e porá na sua cabeça]

Padre Aquino: Já diz as escrituras: “E Deus fez o homem a sua imagem”. Então, o homem representa Deus, portanto todo poder a ele!

Amélia: Até concordo, mas a mulher é a rainha do lar...

Rei Alita: Estão vendo? Até a Amélia concorda com o lugar que vocês devem reinar: cuidando da casa!

Simone: É porque, mulheres como Amélia também são machistas! E foi exatamente religiões como a sua, Padre Aquino, que catequizaram gerações e gerações de mulheres para serem submissas aos seus maridos.   Outra coisa, urubu preto, se Deus é criador e amou tudo que criou, que não deixa nada faltar para as aves do céu nem aos lírios do campo, que colore o mundo com mil cores e tons, que acolhe a todos nas suas infinitas formas de vida na natureza, portanto, um Deus que ama e cuida, por que esse Deus não seria feminino? Por que a imagem de Deus não seria feminina?

Eduardo Mangueira: Olha, pessoal, quem diz que a gente não dá poder à mulher? A lá de casa, pega o meu salário e gasta quase a metade só no salão-de-beleza. E pelo menos alguns dias ela fica o centro das minhas atenções... [ Aproxima-se de Salomé e olha para todo o corpo dela] depois não, né, a gente vai buscar outro colírio nas baladas, nas ruas, em qualquer lugar fora de casa.  

Salomé: Olha, tigrão, mas tem umas gatinhas que são muito cara e se o dinheiro tá na mão, a calcinha tá no chão...

Rei Alita: É... tá valendo... Como é que é pessoal?   

  [Os homens começam a cantar e dançar alguma música que lembre suas farras]

Professora Penha: Infelizmente, a cultura machista se estende a todas as circunstâncias da nossa vida em sociedade, eu diria até em nossa organização de pensamento. Muitas mulheres jogadas ao ambiente familiar machista desde quando nascem, ela dificilmente encontra outra forma de se expressar a não ser no pensamento machista. Um desses pensamentos é ela mesma se achar um objeto. Um objeto de desejo sexual. Vejam nossa companheira Salomé...

Juan Thicuteno: E aí, professorinha, a gente já não pode fazer mais nada... se a mulher [Fazendo sinal de aspas com dedos, ironizando] se veste pra matar, a gente tem que atacar a fera antes.

Simone: Isso que você acaba de dizer, canalha, é uma desculpa para o estupro! Não são as aparências, o superficial, a estética que vão desmoronar o respeito. Quem respeita a pessoa humana, respeita-a independente de suas vestes. Há várias sociedades em que a nudez ou a semi-nudez são elementos naturais e encarados como tais. [Dirige-se ao trono, faz o Rei Alita sair e se senta no lugar dele] Será que para conseguirmos nosso respeito, temos que está vestido igual a vocês e ter hábitos parecidos com os de vocês?

Juan Thicuteno: Olha, vocês até querem andar decentes e seguir nossos hábitos, mas quando toma umas, pagam até calcinha...

Rei Alita: É... tá valendo... Como é que é pessoal? 
 
[Os homens começam a cantar e dançar alguma música que lembre suas farras]

Amélia: Eu acho que cada qual deve ficar no seu lugar. Os homens são mais livres, eles têm as necessidades deles. Homem é assim mesmo... assim...

Salomé: Brutos... e gostosos.

Eduardo Mangueira: É... agora dei valor!     As mulheres foram feitas para as nossas necessidades...

Professora Penha: Que necessidades? Se você se refere ao sexo, temos a mesma necessidade. O machismo é que nos coloca desde cedo para sermos comportadas, moças direitas... temos hora pra sair e hora pra chegar, temos que falar decente, nada de palavrões... pegar camisinha no posto ou na farmácia nem pensar... se ficamos com mais de um garoto, somos galinhas, vadias, periguetes, peguetes... mas a vocês, toda a liberdade, inclusive a de sentir calor e poder ficar sem camisa pra não suar.

Rei Alita: E o que vocês querem, afinal?

Eduardo Mangueira: É... dei valor!.. O que vocês, querem afinal?

Padre Aquino: Querem direitos iguais e virarem tudo sapatão, isso é que o movimento feminista sempre quis.

Juan Thicuteno: Eu concordo com Millôr Fernandes: “o melhor movimento feminista continua sendo o dos quadris.”

Simone: Não defendemos direitos iguais, nós defendemos a igualdade de direitos. Poder sair nas ruas ou para as festas sem ser constrangidas com olhares, assobios e cantadas. Não ser respeitada só porque tá com o namorado de lado. Ocupar qualquer cargo ou profissão que se identificar, receber salários justos de acordo com as horas de trabalho. Poder expor suas ideias em casa sem ser espancada. Escolher ser mãe quando quiser sem precisar ser cobrada por isso. Não ser escrava dos padrões da aparência e da beleza. Ter direito quando casada de sair e conversar com suas amigas assuntos de mulher no bar da esquina...

Professora Penha: Sabemos que há diferenças biológicas entre o homem e a mulher. Não queremos fazer xixi em pé, por exemplo. Assim como o homem não precisa usar absorvente, já que ele não menstrua. Defender isso seria querer direitos iguais. Como minha amiga Simone falou, defendemos a igualdade de direitos e não direitos iguais.

Salomé: Gente, nesse negócio de direitos iguais, eu vou poder andar nua?

Rei Alita: Gatinha, isso só me lembra quando eu perdi meu olho... o Padre Aquino celebrava uma missa, quando entra uma mulher completamente nua dentro da igreja, o padre imediatamente...

Padre Aquino: Quem olhar cega!

Rei Alita: Botei minha mão num olho e disse: vou arriscar pelo menos um... deu no que deu.

Eduardo Mangueira: É... dei valor!..

Amélia: Majestade, vá me desculpar, mas não teve graça nenhuma.

Juan Thicuteno: [Atendendo o celular que estava tocando] Diz aí, pua!... É mesmo, é... vamos já pra aí... Vamos sim... Não, nada de importante... Vou sim... daqui uns 5 minutinhos a gente chega aí... Tá, falou! [Guadando o celular] Galera, cerveja e cachaça de graça lá no P.A!

Rei Alita: É... tá valendo... Como é que é pessoal?   

 [Os homens começam a cantar e dançar alguma música que lembre suas farras e vão saindo de cena. ]

Simone: É... a luta ainda vai demorar muito, são muitos anos de empoderamento masculino.

Professora Penha: Mas não podemos desistir, esta luta do feminino vem de há muito tempo e de muitas culturas, muitas mulheres foram consideradas prostitutas e outras foram queimadas como bruxas.

Amélia: E cadê o restante das mulheres que você convidou, Professora Penha?

Salomé: Amélia, mulher é mais difícil juntar... já homem, basta mostrar uma bola de futebol ou uma garrafa de cerveja.

Professora Penha: Na verdade, as pessoas não querem muito discutir ideias, seja homem ou mulher. E mesmo vivendo na era das imagens, as pessoas estão ficando cada vez mais cegas.

Simone: E na terra de cego...

Mulheres: Quem tem um olho é rei!



Fim










Comentários