Crônica anfíbia


Foto do facebook de Helder Thaim 


Ela veio das ruas que avançam para a Beira-Mar, mas logo se desviou para um beco que se estende ao longo da antiga estação às margens do Coreaú. Além dos sacerdotes vestidos de branco e de vermelho, vinham outros representantes litúrgicos que faziam um cortejo atrás da estátua de Pedro, santo católico. Marinheiros menores traziam a imagem encaixada num andor simples sem muita folhagem nem floração. Os marinheiros de patente mais elevada seguiam logo atrás. Havia um grupo de mulheres de vestidos longos, umas traziam imagens dentro de pequenos nichos, outras traziam velas dentro de mangas artesanais. Um rapaz segurava um estandarte demarcando um grupo de outros rapazes vestidos como anjos. Vestiam-se em figurinos com asas (sem penas) que formavam um trapézio arqueado em tecido fino e esvoaçante e de onde se elevava uma haste para formar uma auréola de flores. Outro já se destacava como um pescador tradicional de chapéu e calças curtas trazendo nas mãos a miniatura de um barco. Ao lado do pescador outras moças com saias acolchoadas em tecido brilhante certamente representavam outros personagens, infelizmente alheios ao conhecimento deste leigo narrador.

A procissão avançava passando pela estreita rua onde moram ribeirinhos, cujas casinhas se dividem entre embarcações, oficinas e comércios. Eu também avancei e já me encontrava a bordo de um barco paralelo à balsa que levaria a imagem e os representantes litúrgicos. Muitos ficaram para acompanhar em terra o cortejo que agora se ia pelas águas. Eu, não. Preferi ir de barco. Sentia-me um intruso por não ser um devoto, mas minha curiosidade foi maior que minha vergonha e logo fiquei bem perto da proa para não perder a maravilha que me circundava.

A banda de metais ficara em terra. Agora havia o mau gosto do barulho dos fogos de artifício, embora não arranhasse a plástica daquele cenário marinho-fluvial da procissão de Pedro, o santo pescador. Barcas com bandeirinhas coloridas cruzavam desinibidas a rota, cuja segurança era dada por um tipo de bote refinado da Marinha. Velas, saveiros, barcos de vários tipos seguiam atrás da balsa de Pedro. Ao longo da mureta que limita as águas da cidade movimentava-se uma massa de gentes que se aglomeravam para acompanhar em terra o espetáculo navegante. Ao meu lado, segurado em mãos firmes de mãe, um menininho de olhos arregalados assuntava o fenômeno ondulante. Alguns tripulantes fotografavam com celulares, outros acenavam para outras embarcações e eu me deixava descer algumas lágrimas que logo se confundiam com a umidade da brisa marinha. Do outro lado, na Ilha do Amor, das barracas-restaurantes vinha um cheiro de alho e óleo que se misturava em odores das algas do Coreaú, invasor do mar. O sol não queria se pôr atrás dos coqueirais e se camuflava de nuvens amarelas que resplandeciam no verde dos olhos de uma compenetrada senhora no canto do barco.

Eu era o rio, eu era o mar, eu era as vozes alegres daquelas gentes que andavam na terra e pelas águas.

Para mim, aquele sinestésico encontro das coisas e do homem e da força da natureza era o encontro do sentido da vida. Homens da terra, homens dos rios, homens do mar, homens híbridos. Homens telúricos e aquáticos.

Para mim, a satisfação era tanta, que achei ter experimentado a última maravilha da minha vida.  Eu já até podia morrer ali mesmo e meu corpo ser jogado nas águas como as exéquias mais dignas do mais feliz poeta do mundo. 

Comentários

  1. Parabéns meu amigo Cláudio.Lindo texto.Eu naveguei com você, Pedro e todos os outros nessa leitura cheia de emoção e encantamento.

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  2. Obrigado, Mazé. Camocim tem encantos que nos é impossível não falar deles.

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